quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Se chama Abril, porque abril é amargo (suicide letters III)



Eu olho pro céu e vejo as estrelas
Elas estão desconexas. Porque falta algo.
Elas sabem, eu sei, e toda criatura viva com um pouco de percepção também deve saber.
Elas já não brilham como antes, fraquejam aos poucos.
O mundo é obrigado a conviver com isso.

Ninguém percebe.

O gosto da chuva já não é tão doce. O sol já não me abraça com os raios matinais como fazia antes. Todos os cachorros que eu encontro pela rua não me dão mais o focinho pra um afago.

Eu olho pro céu e as estrelas estão desconexas.

As plantas não estão mais tão verdes assim. Os prédios vem tomando o lugar de todas as árvores que eu costumava conhecer. E aquela terra marrom e fofa... a coitada já foi faz tempo. 
Só restaram as pedras do asfalto, o ar com cheiro de motor de carro e as flores com cheiro de usina.

As estrelas não brilham mais. Elas sabem, eu sei.
Mas ninguém percebe!

O mundo não gira mais tão calmo. Todos estão com pressa. O relógio é mais rápido, o metrô é mais rápido e o sono também. As madrugadas não tem mais filmes, a pipoca ainda tá no armário da cozinha e o cobertor não tem mais o seu cheiro.
Mais uma estrela se apaga. Menos uma música pro mundo. Mais uma pressa pra eles.

Cadê aquele teu vestido florido que você costumava usar? A minha camisa de terça-feira ainda tá amassada... O rádio toca as mesmas músicas antigas de sempre, e por um instante o meu mundo inteiro está em slow motion, a tv ligada pras paredes, como você deixava, o cheiro doce do açúcar queimando, os cachorros da rua latindo pra um gato qualquer, um folheto de loja na mesa, as almofadas sempre chamativas do sofá. As estrelas, o gosto amargo da chuva, o sol frio, os cachorros indiferentes, as plantas sem cor, os prédios ganhando a disputa contra as árvores, o funeral da terra, o asfalto recém nascido, o cheiro da usina nas flores, o mundo com pressa, sem música e sem gosto. A desconexão do planeta. 

Frio.

Todo o caos do universo parece ter uma causa. O gosto amargo que você deixou quando foi embora e eu não sobrevivi. O mundo perdeu seu sorriso, o mundo perdeu as estrelas e a beleza. O mundo te perdeu. Eu te perdi.

Agora eu estou aqui. São três e quarenta e sete da manhã. Sexta-feira. A tv está ligada, mas não há filmes e nem cheiro bom de pipoca. O cobertor ainda te espera aconchegante e eu também. O violão tá aqui do lado, acabei de compor uma música, se chama Abril, porque abril foi o mês em que eu olhei pros seus olhos pela última vez, então abril também é amargo.

As estrelas estão me encarando. Passaram a ser a minha única companhia. Nem o Percy me quer mais por perto. Fugiu no último domingo, não sei onde ele está. Sente a sua falta. As estrelas também sentem.
Eu também sinto, Clarice.

Será que quando você voltar poderia trazer aquele doce da rua que você sempre comprava? 
Nós podemos ter um cachorro e pôr o nome de Kojak, como naquele livro que você ama. Nós vamos ao cinema todas as quintas e domingos, nenhum filme vai nos escapar e quando nós voltarmos pra casa, a cama ainda vai estar aqui, esperando pela gente, chamando e dizendo que a hora é agora. Clarice, diz pras estrelas que você volta, diz pro mundo. Eu não aguento mais tudo da maneira como está. Vamos tomar um banho de chuva e ficar uma semana inteira com gripe, um cuidando do outro... imagina?

O céu tá azul escuro. Bem escuro. Nada brilha... estrelas, onde vocês estão? “Nós também vamos embora, Noel” diz uma delas. “Mas por que?” eu não posso ser deixado mais uma vez. “O mundo não é mais lugar pra nós e nem pra você” e num instante, elas somem. 

É tudo culpa sua! Você é uma traidora mentirosa. Você me prometeu! Nós tínhamos toda a nossa vida pela frente. Por que, Clarice? A culpa do mundo não funcionar é sua sim! Você é sempre a culpada de tudo com esse sorriso lindo e com essas covinhas que ganham qualquer um. Você levou toda a beleza que existia aqui, não levou? Diz que vai voltar, diz?

Você não responde.
E nem poderia.

O silêncio domina o quarto. Maldito seja o dia em que você saiu com aquele maldito carro naquela maldita chuva... tudo por causa de uma maldita reunião. Maldito seja o filho da puta que estava dirigindo na pista contrária, maldito seja, Clarice! Você poderia estar aqui comigo agora! Você deveria!

Meu amor...

Eu não posso suportar mais isso. Eu te prometi, lembra? Eu disse que iria atrás de você até o inferno. O efeito de todos os remédios que eu tomei demoram um pouquinho, mas eu já vou te ver, Clarice! Nós vamos ficar juntos para sempre. Sempre. Literalmente sempre. Não vai demorar, eu prometo.

Me recebe com seu sorriso lindo e suas covinhas? Eu te preciso. O mundo realmente já não é mais lugar pra mim. Meu lugar é com você, aonde quer que você esteja.

O espelho não me reflete mais... nem as janelas, e nem qualquer coisa que faço reflexo. Só o meu maldito corpo ainda tá preso no mundo físico. 

Eu estou indo embora. O pulsar dentro de mim fraqueja e assim eu me aproveito e faço questão de empurrar pra debaixo do tapete todos os restinhos de vida que ainda contém dentro de mim. Não sinto mais nada... nem dor, nem você, nem o mundo. Eu me despeço. Adeus.

A última estrela que ainda insistia em brilhar no céu azul escuro também se esgota. O último feixe de luz do mundo se apaga. A última música é tocada enquanto a tv mostra cenas de Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Um livro cai da estante... Começa a chover. Chuva amarga. Chuva de abril.

...

Olá, Clarice!

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